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04/10/2011 às 11h20

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Sem corrupção, não há democracia!

*Fernando Filgueiras by Revista Pittacos

 
Dia desses fui buscar meu filho na escola, que se localiza em uma rua de mão única, em Belo Horizonte. Para parar o carro em frente à escola é necessário dar uma volta para poder acessar essa rua. A rua é bem sinalizada e, além de faixas de pedestres, há placas de sinalização e pinturas indicando que  é de mão única. Como um cidadão levemente consciente de seus deveres cívicos que sou, dei a volta com o meu carro e cheguei à distinta rua para estacionar em uma vaga que estava disponível. Para minha infeliz surpresa, uma senhora vinha com seu carro pela contramão e roubou-me a vaga.
 
Cena típica de um dos desenhos do Pateta, personagem da Disney. Pateta interpreta o Sr. Walker, um cidadão comum norte-americano, honesto e cumpridor dos seus deveres. Porém, quando atrás do volante, vira o Sr. Wheeler e, por sua vez, um monstro no trânsito.
 
Perplexo e revoltado, fiz cara de surpresa – ou de Pateta – para ela, que me disse que não havia problema algum em entrar na rua pela contramão e que, por necessidade, estava com pressa para pegar seu filho. Além de mim, o vendedor de balas ficou revoltado e outros pais que aguardavam a saída de seus filhos compartilharam minha raiva, apontando as mazelas do trânsito brasileiro. Contive-me em minha raiva e confesso que foi muito ruim, porque fiquei pensando no significado de tal ato. Fui o legítimo Pateta. A mulher, além de surrupiar a vaga para a qual me dirigia, ainda tirou meu sono.
 
Ora, qual o significado de tamanho desrespeito pela lei em uma sociedade democrática? Não falamos de um acontecimento entre pessoas distintas. Falamos de simples cidadãos comuns – eu e a distinta senhora. No limite, esta cidadã expressou o perfeito desrespeito à lei, justificando-se pelo fato de que suas necessidades falam mais alto que a virtude de obedecer à lei. Uma mãe que desobedece simples leis de trânsito em frente a uma escola diz a seus filhos que suas necessidades imediatas e pequenas são mais importantes que o bem da coletividade, da qual ela e seus familiares fazem parte. Mas será que precisaríamos de uma sociedade feita de cidadãos que obedeçam incondicional e virtuosamente à lei?
 
Certamente uma sociedade feita de cidadãos plenamente virtuosos não pode se dizer uma sociedade democrática, na qual haja liberdade. As virtudes, como já ensinava Aristóteles, se baseiam em uma concepção de boa vida e representam uma disposição de caráter dos cidadãos em persegui-las e realizá-las. Mas o que seria uma concepção de boa vida? Seria uma concepção de felicidade que nutrimos enquanto membros de uma comunidade. Concepção de felicidade esta que deve se basear em uma verdade. As virtudes, se tomadas como cegas, dependem, portanto, de uma concepção de verdade, para a qual estabelecemos nossa fé.
 
A relação entre virtudes e liberdade é muito tensa, porquanto agirmos cegamente em sua persecução significa abrirmos mão de nossos desejos e da satisfação de nossas necessidades individuais. A corrupção significa exatamente a sobreposição dos interesses individuais ao interesse público. E, virtuosos que somos, desejamos uma sociedade livre dela, em que governos e cidadãos cuidem da coisa pública, estando eles envolvidos na mais perfeita pureza de espírito. A corrupção nos horroriza e nos faz lembrar das mais importantes virtudes do caráter político. Todavia, somos incapazes de perceber a corrupção praticada em nosso próprio cotidiano. O cotidiano nos corrompe.
 
Uma sociedade feita de cidadãos e governantes virtuosamente puros é uma sociedade ideal, em que o tirano seja filósofo e os cidadãos iluminados o suficiente para compreender o bem. As democracias, por outro lado, são feitas de cidadãos comuns, que estão longe – muito longe – da filosofia e que seguem, sobretudo, a ordem das necessidades. Nas democracias a corrupção precisa ser tolerada, de modo que ela termina por ter um aspecto funcional. A corrupção nos lembra da existência da lei e de que instituições importam. E que obedecer à lei é fundamental para a existência de uma comunidade política. O que diferencia o reino do rei filósofo de uma democracia é que, no primeiro, as virtudes encontram-se com o demiurgo, enquanto na segunda as virtudes encontram-se nas instituições.
 
O argumento da senhora é que ela agia por necessidade. O ato de desrespeitar a lei seria, em tese, justificado. A ordem das necessidades não comporta as virtudes, para as quais está diametralmente oposta. E são as necessidades que corrompem as instituições. A democracia que se vislumbra no horizonte egípcio é motivada pelas necessidades do povo, tendo em vista desejos imediatos como o fim da carestia, a fruição de bens materiais e tecnológicos, que não poderiam ser garantidos por um governo que se alimentava há 30 anos da exceção. Em uma sociedade que deseja fruir da modernidade, não cabe uma constituição balizada nas virtudes do tirano. Em uma democracia cabe um conjunto de instituições virtuosas, que sejam capazes de alimentar as necessidades dos cidadãos, fazendo-os fruir seus bens e nutrindo desejos.
 
Uma sociedade que seja capaz de compatibilizar as virtudes com as necessidades é uma sociedade capaz de manter a corrupção sob pleno controle. Contudo, nas democracias, as virtudes não são compatíveis com as necessidades, o que exige uma tolerância em relação à corrupção. A corrupção, nas democracias, nos lembra da existência das leis e ocorre quando as necessidades se sobrepõem à lei. Por isso, ela precisa ser tolerada, porque o eventual moralismo que possa surgir desse processo exige um demiurgo platônico, que eleve a autoridade à liberdade, ou seja, estabeleça o autoritarismo.
 
A vil senhora que me roubou a vaga no espaço público, desrespeitando a lei, fez os que presenciaram a cena lembrar a existência das leis de trânsito. Esse é o aspecto funcional da corrupção. Sua existência lembra-nos a importância da constituição e também de que, em uma democracia, a autoridade política tem limites e deve zelar pelo interesse público. O episódio certamente nos faz próximos dos instintos mais primitivos. Teve gente querendo linchar a pobre senhora. Mas, talvez por acaso, isto não ocorreu. A corrupção precisa ser tolerada em uma democracia, como os erros dos outros precisam ser tolerados no trânsito.
 
A democracia exige tolerância à corrupção porque enquanto exigimos virtudes aos nossos concidadãos, esquecemos de olhar nossa própria prática. Os pais que se revoltaram com a vil senhora que me roubou a vaga pela contramão paravam seus carros em local proibido. O vendedor de balas não tem autorização para praticar comércio naquele local e eu, como reles cidadão comum, sigo tentando respeitar as leis e agir virtuosamente. Sem resultados, porque minhas necessidades importam.
 
 
*Texto extraído daqui


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