Mariana Rosa*
Quando recebi o diagnóstico de paralisia cerebral de minha filha, a primeira afirmativa que me ocorreu foi a de que ela tinha um corpo dissonante. Poucos e lentos movimentos, ausência de fala, impossibilidade de se colocar sentada ou de pé com autonomia. Uma corporeidade que não encontrava rima em minha experiência de vida. Eu era estreante nessa avassaladora noção das diferenças.
Corri para os livros,
para as pesquisas em artigos científicos, para profissionais de saúde
que pudessem ensinar sobre a condição que me era apresentada. Queria ser
uma boa mãe e buscava referências que compensassem minha flagrante
falta de preparo. Pensei que seria ali, somente na ciência, nos bancos
da faculdade, o encontro com as respostas que procurava, o alívio que
atestasse que eu saberia lidar com minha pequena Alice. Não me faltava
amor por ela, que fique claro.
Essa busca nos levou por
incontáveis consultórios, clínicas e hospitais. Eu havia encontrado uma
única urgência como resposta às minhas indagações: precisava ajudar
Alice a ultrapassar os próprios limites. E tinha que ser já, rápido, sem
tempo a perder, porque a intervenção precoce poderia fazê-la ganhar
muitas habilidades, porque a plasticidade cerebral precisaria ser
explorada, porque ela poderia ser um exemplo de superação, diziam.
A
urgência por entender o corpo de minha filha nos engoliu. Seu primeiro
ano de vida se assemelhou a uma prescrição médica, com um colosso de
protocolos a serem seguidos. Ela cumpria a agenda quase sempre dormindo,
sobrecarregada que estava por medicações que prometiam normalizar suas
ondas cerebrais. Foi preciso vivenciar essa rotina extremada para que eu
tropeçasse em minhas limitações.
Era no encontro diário
com ela. Não era realizando as tarefas que nos diziam ser importantes.
Era sendo junto com ela, e, assim, descobrindo seus desejos e suas
prioridades. Levou algo como um ano até que eu aprendesse a
verdadeiramente olhar para minha filha.
O que eu, enfim,
pude ver foi tocante. Ela não tinha um corpo dissonante, como eu
presumia. Tampouco diferente, uma vez que não há referência para o que é
estar vivo. Não existe um código de barras para o ser humano, um
controle de qualidade que dite a referência a partir da qual a
existência deve ser estruturada.
Esfreguei os olhos muitas
vezes, para afastar padrões que não nos serviam, referências que não
eram as nossas. Desanuviada, conheci a menina valente, bem-humorada,
decidida, que adora passarinhos, que tem preferência por frutas e se
diverte com brincadeiras radicais. Eu não podia perder mais nenhum
detalhe. Ela esperou ter essa certeza para me entregar, então, seu
primeiro sorriso, com um ano e quatro meses. Foi quando eu mereci.
Meu
repertório de mundo finalmente estava se ampliando para dar conta da
nossa existência. Já não fazia sentido caber onde quer que fosse, mas
pertencer. Foi assim que me deparei com muitas outras existências que,
até então, desconhecia.
Minha filha jamais será aquele
exemplo de superação que pretenderam para ela. Não assim, como destino,
como objetivo, como fardo, como imposição. Antes, quero que o mundo
possa ser exemplar na superação das barreiras que limitam tantas vidas. A
nós, que caiba apenas o exercício da liberdade.
*Mariana Rosa é mulher com deficiência, mãe da Alice, jornalista, consultora do tema inclusão e ativista dos direitos das pessoas com deficiência
*Publicado na edição 44 da revista Painel Alagoas
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