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16/08/2021 às 11h40

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Jornalismo e Ativismo: ainda cabe falar em “objetividade”, “neutralidade”e “imparcialidade”?

 Samuel Pantoja Lima -  Pesquisador do objETHOS


No dia 19 de junho de 2021, a tragédia humanitária provocada pela pandemia da Covid-19 chegava à marca do meio milhão de vítimas. O telejornal de maior audiência do país (Jornal Nacional, Grupo Globo) publicou, no final daquela edição, um editorial no qual aponta algo que pode impactar, decisiva e positivamente, a concepção de jornalismo ora hegemônico, ainda pautado em valores tipicamente positivistas ditados pela escola estadunidense. Ao concluir o texto, que fazia duras críticas ao governo Bolsonaro, o apresentador William Bonner afirmou: “Tudo tem vários ângulos e todos devem ser sempre acolhidos pra discussão, mas há exceções. Quando estão em perigo coisas tão importantes como o direito à saúde, por exemplo, ou o direito de viver numa democracia, em casos assim não há dois lados. E é esse o norte que o jornalismo da Globo continuará a seguir”.

Uma nova história pode ser escrita pelo jornalismo tradicional brasileiro, a partir desse editorial apresentado pelo Jornal Nacional. Valores como objetividade, neutralidade e imparcialidade “embalam” os produtos da indústria jornalística desde o final do século 19, depois da consolidação do “modelo empresa”. Na transição entre o chamado jornalismo literário, engajado ou partidário – praticado nos primórdios, dois séculos antes – ao “moderno” ou “industrial”, tais valores surgiram justamente da busca por uma estratégia comercial que desse ao conhecimento do jornalismo um estatuto social distinto do publicismo, que marcava especialmente o produto impresso, pautado mais na opinião e menos em apuração dos fatos. 

Sobre essa questão específica, Rafael Paes Henriques e Catarina Giordano Paes Henriques, escrevem: “Com o objetivo de aproveitar o crescimento da população urbana e letrada e aumentar o número de leitores possíveis, a imprensa, que até então se organizava desde os jornais de causa, ligados a grupos políticos que os financiavam, se transformou em jornal empresa, e uma nova conduta profissional de suposta neutralidade partidária se impôs como estratégica. As expectativas de novos públicos, que passaram a ler e a comprar jornais, giravam em torno de um produto com mais fatos e menos opiniões, configurando os formatos que vieram a ser reconhecidos como pertencentes a um gênero jornalístico próprio: o informativo, no qual se exige, supostamente, a separação do que é fato daquilo que é a opinião do jornalista”. 

Há pouco mais de 400 anos, chegava aos Estados Unidos o primeiro navio negreiro, com 20 pessoas negras que restavam vivas depois da longa travessia do Atlântico para serem escravizadas. Na esperança de resgatar essa história e investigar mais a fundo a contribuição da população negra na fundação daquele país, a jornalista Nikole Hanna-Jones, do The New York Times, publicou uma série de reportagens chamadas “Projeto 1619”. A reação dos setores segregacionistas estadunidenses foi imediata e barulhenta: da tentativa de desqualificação da jornalista, uma mulher negra, neta de escravos, até o exercício do negacionismo histórico, que alimenta a ideia dos “pais brancos e fundadores da pátria”, excluindo todo e qualquer vestígio da presença de pessoas negras na construção de riquezas que as famílias brancas acumularam ao longo dos séculos. 

Em recente entrevista à Folha de S.Paulo, Hanna-Jones bate de frente com a noção de “objetividade” como sinônimo de “neutralidade”, a partir da Série “The 1619 Project” (vencedora do Prêmio Pulitzer 2020). Quando perguntada se era “desejável ou mesmo possível separar jornalismo de ativismo quando se aborda um tema tão sensível como o racismo?”, respondeu: “Eu não acredito que nenhum jornalista seja apenas objetivo, seja ele de uma minoria racial ou não. Quando você se torna especialista em algo, você constrói opiniões sobre aquele assunto. O que precisamos é objetividade nos métodos. Ter certeza de que se está sendo preciso e justo, usando métodos objetivos. Mas não precisamos fingir que não temos pensamentos e sentimentos sobre aquilo que cobrimos. Eu escrevi sobre segregação racial no sistema público de ensino e claramente eu penso que essa segregação é errada. Eu me oponho à segregação escolar, mas isso não significa que eu não possa reportar de maneira justa e precisa sobre este fenômeno”.

A jornalista estadunidense acrescentou algo ainda mais interessante ao debate, na distinção entre jornalismo e ativismo: “No que tange ao ativismo, eu acho que existe uma diferença entre ser ativista e ser jornalista. Mas também acho que todo jornalista, em certa medida, é um ativista porque, nos EUA, acreditamos que o jornalismo existe para responsabilizar pessoas em posições de poder, para falar em nome daqueles mais vulneráveis. Acreditamos que jornalismo é necessário para a democracia. E todas essas posições não são neutras, mas ativas. Meu ativismo toma forma quando escrevo e exponho injustiças. Outras pessoas o fazem marchando nas ruas. Não acho que eu deva estar envolvida nessas duas frentes, mas eu não posso fingir que não exista ativismo nas minhas motivações para me tornar uma jornalista”. 

O editorial do JN, lido pelos apresentadores Renata Vasconcellos e William Bonner, além da reverência e do respeito às famílias enlutadas e a milhões de brasileiros e brasileiras duramente atingidas e atingidos pelas perdas provocadas pela Covid-19, trouxe algo que ainda precisa ser provado, experimentado, discutido, praticado no jornalismo brasileiro. Ao longo da história, o ativismo da mídia corporativa no Brasil sempre foi o avesso do avesso, ou seja, os grupos econômicos de comunicação sempre estiveram ao lado do opressor, dos “vencedores” oficiais, das ditaduras e golpes — como nos recentes casos da ditadura civil-militar de 1964 e o golpe contra democracia em 2016, que resultou entre outras coisas na eleição da extrema-direita ao Poder Executivo, em 2018. As causas humanitárias que hoje têm força global, impulsionadas pelas redes sociais e pelo jornalismo independente publicado exclusivamente na internet, nos desafiam a pensar no jornalismo como forma social de conhecimento humano capaz de assumir claramente posições, sem abrir mão do primado da verdade, do rigor dos métodos de apuração e, especialmente, incluindo toda a diversidade de posições e fontes presentes na realidade histórico-social. 


*Publicado originalmente na edição 50 da revista Painel Alagoas


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