Lúcio Carril - Sociólogo
O Brasil foi tomado nos últimos dias pela notícia de que o presidente da câmara federal colocou em pauta de urgência o projeto de lei 1904/2024, que modifica o texto da lei atual para prática de homicídio a vítima que fizer aborto após a 22ª semana de gravidez, mesmo no caso de crianças e adolescentes.
Não causou estranheza essa câmara federal, majoritariamente masculina, legislar contra mulheres, mas a repulsa da sociedade está sendo grande, dada a gravidade do ataque misógino, desumano, infanticida e criminoso da ação.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, estima-se que o Brasil tenha em média 822 mil estupros por ano, ou seja, dois estupros por minuto. Apenas 8,5% são registrados pela polícia e 4,2% pelo sistema de saúde.
O estudo, divulgado em março de 2023, se baseou em dados da Pesquisa Nacional da Saúde, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNS/IBGE), e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, tendo 2019 como ano de referência.
Em 2022, o Brasil registrou 74.930 estupros, uma média de 205 estupros por dia, segundo levantamento do
Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Desse total, 58.820 das vítimas eram menores de 14 anos.
Entre 1º de janeiro e 13 de maio de 2024, foram feitas 7.887 denúncias de estupro de vulnerável ao serviço Disque Direitos Humanos (Disque 100).
Em média, 38 meninas de até 14 anos se tornam mães a cada dia no Brasil. Em 2022, último período disponível nos relatórios do Sistema Único de Saúde (SUS), foram mais de 14 mil gestações entre meninas com idade até 14 anos.
Esses números não são mera estatística. Eles têm sangue, corpo, sentimento, sonhos... e a maioria deles tem esperança de alcançar uma vida adulta saudável física e mentalmente.
Aí você me pergunta: qual o motivo para modificar uma lei que tem 80 anos, com a finalidade de criminalizar mulheres, adolescentes e crianças vítimas da extrema violência?
A primeira percepção é que ao tratar a vítima de estupro como criminosa ela se sinta intimidada para denunciar o crime e procure meios insalubres para fazer o aborto, o que certamente levará à morte, no caso de crianças e adolescentes. Com isso, o estuprador ficará impune. Há um viés psicológico nisso, em fazer a vítima se sentir culpada e com medo. Na essência, perdura a ideia da mulher objeto, sem direito de reclamar e resignada a sofrer a opressão e o abuso do homem.
No caso mais estruturado, do ponto de vista sociológico, é possível vincular esse ataque misógino ao crescimento do neopentecostalismo no Brasil e sua atuação como ideologia da ultradireita política.
A chamada "pauta de costumes", que de costumes não tem nada - se trata de uma guerra contra o processo civilizatório - vem ganhando espaço no campo político com o crescimento dessa ordem evangélica. No início deste século, os evangélicos eram 15,6% da população brasileira. 10 anos depois, já somavam 22,89% (IBGE 2012).
Em 2020, 31% (datafolha 2020). Dados do Censo 2022 ainda foram divulgados, mas estima-se que os evangélicos já sejam um terço da população brasileira.
Nada contra a religião, o problema está no projeto de dominação política, social, econômica e cultural do neopentecostalismo e sua vinculação às bandeiras medievais. A chamada "teologia do domínio" e sua base na doutrina dos "sete montes" revelam essa estratégia.
Esse crescimento foi meteórico nas duas primeiras décadas do século XXI e veio ao encontro do crescimento, ou da emergência, da ultradireita no Brasil.
A extrema direita, ou ultradireita, tem assumido o viés moral e cultural do neopentecostalismo, passando a lutar contra direitos civilizatórios conquistados pelas mulheres, gays, negros, PCDs, indígenas, quilombolas.
Trata-se de uma guerra cultural, cujas vítimas são grupos e gêneros fragilizados historicamente, mas que têm ganhado destaque na sua luta e conquistas.
As cartas estão na mesa. Ou a sociedade reage ou
voltaremos à idade da trevas, com mulheres e gays sendo queimados em praça
pública, negros voltando à senzala e indígenas sendo dizimados.
*Publicado na edição 82 da revista Painel Alagoas
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