As fábulas estão aí há mais de dois milênios, desde Esopo, passando por La Fontaine e Perrault, até os irmãos Grimm, Sylvio Romero e Cascudo. Tobias Barreto, que fez escola literária e acadêmica dês o Recife, tivera o seu cãozinho Goethe — quase, tal qual o dono, a aprender autodidaticamente o idioma germânico. Um dos ícones da historiografia clássica brasileira, o aristocrático Pedro Calmon, batizara Reinaldo o seu gato. A distopia de Orwell dedicara aos bichos toda uma “revolução” no seu irônico romance de crítica ideológica. Marcelo Rubens Paiva reaparece, não há muito, com o seu orangotango marxista. Há em Drummond uma zoopoesia do boi. Kafka transformara Samsa num horrendo besouro (talvez uma barata). Em Clarice, eis o vira-lata Ulisses. Em Yeats, o dragão vermelho. Em Lobato, o Quindim e o Marquês de Rabicó. O jogo do bicho. Galo, Porco, Gaviões, Peixe, Canarinho, Leão. Ruy: o Águia de Haia. Tucanos, Sapo barbudo e cavalgaduras. O Zoon politikon de Aristóteles. O animismo. Pontes de Miranda e sua coleção de corujas. A Baleia de Vidas secas, do fértil Graciliano. De Obama, o Bo; de Bush (sênior), o Sully. E tantos, tantíssimos mais, inumeráveis: a Lassie, o Ri-Tin-Tin, o Scooby-Doo, o Rei Leão, a ovelha Dolly, o Pica-Pau, o Garfield, o esquilo Scrat, o ursinho Pooh, os peixinhos Liguado e Nemo, o Mickey Mouse, os 101 dálmatas, o Marley e até a vereadora Cacareco e o Louro José.
Ao lado de um burrinho pedrês e dos boizinhos imaginários de sabugos, Guimarães Rosa estimara, no mundo real, os seus gatos de olhos claros. Nunca fui muito com eles, porém. Gatos são quase ao sempre desconfiados; olham-nos com uns olhos meio cismados, como a quererem algo insinuar, todavia apenas insinuado, dito nem pelo miado da sétima vida. Não mentirei: um gato tive, quando ainda nos bancos da graduação universitária; gato que, duma tarde pruma noite, descobri-o gata. Enganara-me a astuciosa gata de olhar celeste e indefeso. Gata de pelo branco, bela, e que chegaria a receber três nomes de macho antes de se me revelar fêmea, como a me tapear, essa Diadorim de Grande sertão: veredas, jagunço Riobaldo atarantado de mim.
Primeiro, nominei-a, coitada, pedantemente, Gurvitch — nome chique, de sociólogo russo-francês. Depois, sem ainda saber ele ser ela, dei-lhe o prenome Wenceslau (extenso demais para um bicho tão mimoso) — numa alusão a Wenceslau de Almeida, magistrado barbaramente assassinado na sua cadeira de balanço por questões de terras, mas mais para historiador, genealogista e filólogo alagoano, de quem ninguém ouviu falar e do qual, aliás, venho reunindo a obra esparsa em retalhados jornais e curiosíssimos caderninhos manuscritos; talvez Wenceslau, comparara eu, olhos aclarados por acesos, de curioso dos fastos da província. Por fim, ao gato — à gata, ops! — dera o registro de poeta: Aloysio — assim mesmo, com y e tudo, fonema desusado; do mesmo Aloysio Branco, em sobrenome combinativo com os pelos felinos daquele (daquela), autor modernista de uns versos muito longos e de umas crônicas deliciosas tão de menino impossível, companheiro de geração doutros impossíveis meninos, coetâneos de uma época que estou a me convencer haver consistido no período (o que vai de meados dos anos 20 ao final dos 30 do século passado) o mais viçoso de nossas criações literárias e artísticas.
Tivera eu também um cão, falecido cego, cambaleante, por epiléptico, malgrado as doses de gardenal que lhe ministrávamos. Em duas casas — menino de interior e menino de capital — tivéramos, além daquele, cães de esquisitos nomes para nós da primeira idade e do Nordeste mestiço do Brasil: designações terríveis de contextura nazi (Heydrich I e II, Lina, Geli, Hess e Blondi), só por serem os bichos em neve, akitas frágeis para os trópicos, primos de huskies siberianos e mais para stalinistas que hitleristas.
Nomes até muito comuns para cães, de desenhos e de heróis, houve-os ainda. Um dos, morto engasgado, o pobre, com osso na goela, o Hulk; cão que não chegara a ser verde, mesmo defunto, e sim marrom pastor-alemão. E mais: um Hulk II, Cheetara, Karen, Duque, Blondi II, Neguinho, Ted e a principesca Kiya, achada a comer grilos antes de sua adoção.
De uma feita, adotei Pequeno, cão ingênuo e bondoso, que não nego haver maltratado um pouco com apertos, por ser tão macio nas suas felpas cremes; bem o oposto — como Timão e Pumba ou Pinky e o Cérebro — de seu irmão de criação, o Barbante, cujo designativo já tudo ilustra.
Uma de minhas irmãs, a que apelidei, pilhericamente e por muito tempo, Zé, criara um pintinho a que dera por nome o delicado de Piupo, adquirido nos baixios são-franciscanos próximos ao Penedo, onde o vento faz a curva e o povo vive mansa e longevamente feito os jabutis: em Igreja Nova, numa feira. Suas penas, após seu passamento, seriam por sua dona bordadas e emolduradas, inclusive, sob um luto exemplar. Esta mesma irmã também cuidaria de um cão cor de mel, e para adoçar-lhe o austero do nome, alcunhara-o simplesmente Momô.Há os que criam cobras, tigres, confiam em jacarés, até. Bichos mil, nocivos, perigosos em demasiado. Ou, atrás das portas, cágados, daqueles de melhor idade, feito o Maradona que conosco estivera, no entanto, de tão pouco ágil, não venceria, qual seus parentes próximos, o coelho da moral folclórica; fora-se tristonho logo após a perda da companheira sem nome, abocanhada inteira como manjar canino. Bichinhos. Mais. Alguns estimados; degustados também. Foies gras. Carne de rã, de javali, de pato. Há uns Noés com suas arcas, criando seus bichos filhos em quartos-e-salas. Outros, hipócritas, quais certos estudantes de medicina, amam as suas espécies de estimação, e odeiam os seres humanos. Senhoras também, algo fúteis, dão de tudo do melhor a seus pequenos e se veem incapazes de qualquer ato de solidariedade... humana. Animais mil, bichos sem conta. Bicho estranho é mesmo o indivíduo.
*É Ph.D. em Sociologia. Membro das Academias Alagoana e Pernambucana de Letras