Por Carlos Amaral
Dos oito meses de 2020, ao menos seis foram de combate à pandemia da covid-19. No Brasil, a partir do mês de março, os estados começaram a implantar medidas de isolamento social como forma de achatar a curva de contágio do novo coronavírus. A medida ainda é considerada a mais eficaz no combate à doença, até o momento sem cura ou vacina. Contudo, o isolamento exige engajamento coletivo, algo que muitos acreditaram ser possível, já que, afinal, trata-se de um vírus mortal e que se espalha rapidamente. O sentimento era de que prevaleceria o comportamento de proteção enquanto espécie, inclusive, com alto grau de solidariedade, superando até mesmo as diferenças de classe social. Ledo engano.
O que se viu foi, desde o início das medidas protetivas, foi uma série de movimentos negacionistas e a tentativa voraz de expor os mais pobres ao contágio para os mais ricos permanecerem protegidos. Tudo sob o argumento de que o vírus não existia; se existisse não era letal; se ele matasse, matava pouco e “só” alguns segmentos; e que o desemprego era a “pior pandemia”.
Assim como Eduardo Galeano, em As Veias Abertas da América Latina, escreveu que subcontinente estaria condenado a servir ao imperialismo do Norte, os mais pobres – ao menos no Brasil – parecem fadados a servir os mais abastados, custe o que custar.
“Mas a região continua trabalhando como serviçal, continua existindo para satisfazer as necessidades alheias, como fonte e reserva de petróleo e ferro, de cobre e carne, frutas e café, matérias-primas e alimentos, destinados aos países ricos que, consumindo-os, ganham muito mais do que ganha a América Latina ao produzi-los”, escreveu o autor uruguaio. Nesse paralelo, a América Latina é os mais pobres, muitos forçados a trabalhar quando deveriam ficar em casa para proteger a si e aos demais.
Basta uma pesquisa rápida em qualquer meta-buscador na internet e se encontra casos de domésticas vítimas da covid-19, contaminadas por seus patrões.
Na avaliação da socióloga Danúbia Barbosa, a pandemia expôs feridas que já estavam expostas, mas muita gente não via, ou fingia não ver.
“Toda aquela movimentação para abrir o comércio, como se a vida fosse algo secundário e não fosse mais importante. A economia para ser gerida – e gerada – precisa de vida, de pessoas”, pontua. “Muitos esperavam que a pandemia fosse escancarar o que as pessoas tinham de melhor, mas não foi isso que vimos. O individualismo ainda está muito consolidado. Talvez se precise de outra crise como essa para criar um processo de conscientização em relação a questões como solidariedade, empatia, amor ao próximo. Cancelou-se réveillon e carnaval, se não houver vacina até lá, mas se está brigando para que as crianças voltem para a escola. A vida se torna algo secundário. Não podemos deixar que isso ocorra. Precisamos elencar as prioridades e fazer um novo recomeço, seja na economia ou na política, tendo a vida como nossa medula”, completa a socióloga.
Na avaliação de Danúbia Barbosa, o individualismo está arraigado na sociedade brasileira e nem a crise gerada pelo novo coronavírus enfraqueceu essa característica. Ainda de acordo com ela, os problemas apresentados pelo Estado são reflexos dessa mentalidade coletiva.
“A gente viu o Estado também escancarando suas feridas. Nós não estamos preparados para uma grande catástrofe, como uma pandemia. Temos um grande número de invisíveis; temos feridas abertas no sistema educacional, que a pandemia mostrou. A gente não está preparado para aulas à distância; o sistema de saúde brasileiro também não estava preparado. Todas as fraturas expostas ficaram mais expostas, as vísceras do Estado saíram. Isso é reflexo da população, uma vez que ela é quem escolhe os representantes do Estado. Vemos cada vez mais o individualismo acirrado”, afirma. “E quando se flexibiliza [as medidas de isolamento], se vê as pessoas nas ruas, nos bares... Elas sentem necessidade, como se ir ao bar fosse obrigação, que foram abertos por uma necessidade de mercado, mas, necessariamente, não se precisa ir lá. Bares e shoppings lotados só mostram como o individualismo está acirrado”, completa a socióloga.
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Fonte: Painel Alagoas