Por Evellyn Pimentel
“Ilhados”. É assim que 800 famílias da comunidade dos Flexais, no bairro de Bebedouro em Maceió se intitulam. A região é uma das localidades da capital alagoana que sofre com os efeitos do afundamento de solo que atinge cinco bairros. Desde 2019 os moradores enfrentam o esvaziamento de imóveis ao entorno e atualmente encontram-se sem serviços essenciais, comércio e até atividades religiosas. Eles reivindicam a saída e inclusão no Programa de Compensação Financeira da Braskem, empresa responsável pela exploração de salgema que obrigou a realocação de mais de 60 mil pessoas.
A comunidade vem denunciando que além dos efeitos sociais e econômicos causados pelo isolamento das demais áreas da cidade, as movimentações de solo também atingem a região.
“Estamos sendo massacrados. Não existem direitos. Foram tirados todos os nossos direitos. Crianças sem escola ou estudando distante e as mães sem poder acompanhar o desenvolvimento porque muitas não têm nem o dinheiro da passagem, foi tirado tudo, até as missas, até os cultos, até as igrejas foram tiradas de nós”, desabafa Lucélia Sarmento que há 40 anos reside no Flexal, em Bebedouro.
Para entender a situação dessas famílias é preciso relembrar o caso, ainda em 2018, quando um terremoto de 2,5 na escala Richter culminou num êxodo urbano inédito no país após o surgimento de fissuras e rachaduras em edificações e vias dos bairros do Pinheiro, Bebedouro, Mutange, Bom Parto e Farol. Em 2019, o Serviço Geológico do Brasil (CPRM) apresentou conclusão dos estudos realizados em Alagoas e apontou que a exploração operada pela Braskem, durante quatro décadas, criou vazios no subsolo há cerca de 1000 metros de profundidade. Ao todo, 35 minas foram perfuradas ao longo do período, algumas delas alcançando 120 metros de diâmetro e alturas comparadas ao Empire State Building, arranha-céu de 102 andares no centro de Manhattan, Nova York (EUA). Com isto, o risco de um sinkhole ou abertura abrupta do solo obrigou as pessoas a deixarem suas residências e empresas temendo um colapso.
A partir daí a criação de um mapa de risco determinou a evacuação de determinadas áreas pelo nível de criticidade. Tal avaliação deixou de fora 20% da região conhecida como Flexais, justamente esses 800 imóveis por, segundo os órgãos responsáveis, não haver evidências dos efeitos da movimentação de solo. Entretanto, a decisão provocou um efeito colateral: o isolamento social e econômico da localidade que também é situada próximo à Lagoa Mundaú.
O chamado Ilhamento socioeconômico foi atestado pela Defesa Civil de Maceió em parecer técnico encaminhado à Força Tarefa do Caso Pinheiro – grupo que envolve órgãos de controle do estado -, recomendando que as regiões dos Flexais de Cima e de Baixo e Rua Marquês de Abrantes, no bairro de Bebedouro fossem realocadas.
“O relatório aponta que essas áreas são impactadas pelo processo de Ilhamento Socioeconômico em decorrência da saída de grande parte dos equipamentos públicos e estabelecimentos comerciais da região circunvizinha, o que compromete a vida social de quem vive nas localidades”, explicou o coordenador da Defesa Civil de Maceió Abelardo Nobre.
De acordo com o Ministério Público Federal (MPF) a situação dos Flexais difere em relação ao potencial risco à vida, motivo pelo qual os demais bairros foram realocados e portanto ainda precisaria de discussões para se chegar a uma definição. Propostas de requalificação da região chegaram a ser discutidas com a Braskem, entretanto, até agora não há definições quanto ao futuro da região.
PEDIDOS DE SOCORRO
A intensificação dos pedidos de socorro dos moradores do Flexal tem explicação: com o período chuvoso o medo se intensifica. A área é próxima de encostas e da Lagoa Mundaú. Desde o início de maio deste ano até agora foram registrados três desabamentos de residências. Segundo os relatos, as rachaduras, fissuras e fendas no chão tem virado rotina na comunidade.
Renato Inocêncio é morador do Residencial Parque da Lagoa e detalha a rotina de sofrimento e tensão da comunidade.
“Os buracos surgem do nada. Um dia estávamos na porta conversando e vimos como se fosse um buraco se abrindo como se fosse sair alguma coisa, um caranguejo, algo assim, aí vinha passando um rapaz de muleta e quase caia dentro. Dizem que é questão de saneamento, mas sabemos que no Pinheiro começou assim. No Flexal de Baixo tem duas crateras, algumas pessoas botam barro, mas afunda, abre outra em outra rua. Porque aqui eles não reconhecem que é problema da Braskem?”, indaga o morador.
Lucélia Sarmento afirma que os moradores estão assustados e sem perspectivas. “São imagens claríssimas, de patologias que ocorreram nos outros bairros e agora estão acontecendo aqui. E eles [Defesa Civil] estão voltando atrás da própria análise que eles fizeram lá atrás nos outros bairros. Rachaduras com dois, três anos, que são fechadas e se abrem novamente. Estamos assustados e estamos pedindo socorro porque não sabemos o que fazer”, pontua.
Os moradores afirmam que os problemas vêm aumentando e as explicações dos órgãos responsáveis não satisfazem.
“Existem casas que estão rachadas, uma atrás da outra, as pessoas morando nas casas, a Defesa Civil vem diz que é questão de alvenaria, estrutura da casa e manda não circular na casa no local que está rachado, para não ir na área do quintal, por exemplo. Como alguém não vai circular na própria casa? Tem uma casa que a rachadura parece que passou a serra elétrica no meio da casa, dividindo a casa ao meio e eles não fazem nada. A Defesa Civil disse que o problema é o acordo. Que como estamos numa área de monitoramento por isso não somos contemplados”, enfatiza Lucélia.
Para Renato Inocêncio, a situação virou um “jogo de empurra” entre os envolvidos. “A gente está vivendo um problema que tem que ser pessoas que conheçam a situação, que sejam profissionais. Aí fica uma jogando para o outro e nada é resolvido. O chão está afundando, todo mundo correndo risco e nada é resolvido. Veio um pessoal da Braskem para avaliar e dissemos que só ia deixar tapar [o buraco] depois que viesse um técnico especializado. O que tem aqui são dois pedaços de rua das pessoas mais necessitadas, muitas pessoas saindo pra morar de aluguel, deixando casas próprias porque não aguentam mais, não tem como mais viver aqui. É isso que deixa a gente mais triste, porque o que mais a gente pede é que tire a gente daqui e eles não fazem nada”, diz.
ESTUDO INDEPENDENTE COMPROVA RISCOS
Com tantas incertezas em relação ao futuro da região e após dois anos de cobranças, o Movimento Unificado das Vítimas da Braskem (MUVB) entidade que tem liderado as reinvindicações dos atingidos pela mineração, reuniu especialistas na tentativa de comprovar a relação do afundamento de solo nos Flexais.
Os estudos realizados foram protocolados no início de junho junto à Defensoria Pública do Estado (DPE). O objetivo do Movimento é acionar a Justiça alagoana para cobrar a realocação.
Conforme o documento, mais de 60 imóveis dos Flexais estão em situação crítica e toda a região está em zona de influência da movimentação de solo. Responsável pelo laudo técnico de inspeção, o engenheiro civil Lucas Mattar detalha que as edificações dos Flexais de Cima e de Baixo possuem padrões construtivos muito diferentes e datas de construção que vão de 5 a 60 anos. As vistorias foram realizadas em fevereiro deste ano e identificaram uma série de problemas desde trincas e rachaduras, até comprometimento de estruturas e solo cedendo.
“O perímetro visitado é de aproximadamente 1.500 metros e no decorrer das vistorias todas as casas apresentavam fissuras, rachaduras ou trincas em maior ou menor profundidade. Além de manifestações patológicas causadas por recalques do solo. As datas em que as patologias se fizeram presentes é similar com cada morador das edificações vistoriadas Com base nas informações retiradas das análises de cada casa e tratando como forma coletiva, com as 62 edificações vistoriadas e tendo em mente os problemas já confirmados pela CPRM, Defesa Civil e diversos outros órgãos, pelo laudo técnico de outros engenheiros e estudos feitos (...) Assim, diante das evidências, classifico a situação das edificações do Flexal de Cima e Flexal de Baixo, em conjunto, como CRÍTICO e recomendo fortemente que as autoridades locais juntamente com a CPRM sejam convocadas para tomar as medidas cabíveis pelo bem da população local”, detalhou o especialista em laudo.
O também engenheiro Abel Galindo, autor de diversas análises sobre a processo de subsidência relacionado à mineração confirmou o que chama de “zona de influência”. Segundo ele, a região está a 1540 metros de distância das minas de salgema.
Conforme explicam os especialistas, patologias semelhantes foram encontradas em pontos e ruas diferentes.
“Perceba que o Mapa do Prof. Abel Galindo alcança toda extensão das Ruas Tobias Barreto no Flexal de Baixo e Rua Faustino Silveira no Flexal de Cima além disso o laudo técnico do engenheiro também demonstrou que as patologias nas residências também têm a mesma extensão em ambas as ruas”, pontua o líder comunitário Maurício Sarmento.
JUDICIALIZAÇÃO
“Vamos encaminhar um requerimento para as autoridades tomarem providências com relação ao pessoal dessa área do entorno, no sentido que essas pessoas sejam retiradas desses locais que no nosso entendimento tem criticidade e do ponto de vista econômico e social estão em situação. Num primeiro momento vamos questionar, levar tudo isso para a Defesa Civil, MPF, MPE. Vamos aguardar, dar prazo e caso não se tome nenhuma providência vamos procurar judicializar isso. No nosso entendimento as provas robustas. O apoio da comunidade é maciço”, detalha Cássio Araújo, líder do MUVB.
Conforme explica Maurício Sarmento, líder comunitário do Flexal a expectativa é de buscar a a reparação.
“Nós ofertamos a Defensoria todos os argumentos necessários para que eles ingressem com uma ação e no nosso ponto de vista uma ação bem sucedida. Porque é inadmissível que ainda tenhamos moradores numa área com risco. Nós apresentamos a DPE todos os argumentos técnicos e ele nos falou que há intenção de judicialização daquelas áreas.”, diz.
Para o coordenador do Núcleo de Proteção Coletiva da DPE e defensor público Ricardo Antunes Melro é preciso ações efetivas para a resolução do problema.
“Há um fato já comprovado e que, até o presente momento, a Braskem não mostrou vontade de resolver, que é o ilhamento socioeconômico que tem levado a população a passar por maus momentos, sem comércio, sem fonte de renda, uma área que se tornou inviável para a moradia aqui, na nossa capital, e que, até agora, nada, seja para compensar financeiramente as pessoas que trabalham no comércio, seja para realocar os moradores com as devidas indenizações”, pondera o defensor.
Melro aponta que a saída encontrada pelo órgão é a judicialização do caso.
Tudo indica que iremos levar o caso à justiça. Recebemos esses documentos de profissionais reconhecidos, muito capacitados, indicando problemas de ordem geológica na região, causada pelo trabalho da Braskem, pela mineração mal feita da Braskem e, mais que isso, já comprovado pela própria Defesa Civil do Município de Maceió, acerca do ilhamento e necessidade de realocação dessa população. Então, já faz muito tempo que a Braskem está ciente, assim como todos os órgãos, e infelizmente, não mostrou vontade de resolução administrativa. Por isso, tudo indica que isso vai para a justiça novamente”, acrescenta.
JULGAMENTO INTERNACIONAL
Há cerca de um ano, tramita na justiça Holandesa uma ação com o objetivo de responsabilizar internacionalmente a Braskem pelos danos causados em Maceió. O processo foi movido por moradores e lideranças comunitárias, considerando que a mineradora também possui escritórios naquele país.
No último dia 17 de maio, ocorreu a primeira audiência do processo. Agora, as partes terão até setembro para discutir o assunto, prazo dado pela justiça da Holanda para decidir se o processo será jugado ou não por lá.
O objetivo da ação segundo o escritório que representa os moradores dos bairros afetados pelo afundamento de solo é de pressionar a Braskem na reparação ao dano causado em Maceió.
“A Braskem oferece indenizações por danos morais de valor fixo por núcleo familiar, e não para cada indivíduo afetado (...). O processo na Holanda é necessário porque a Braskem não assume sua responsabilidade pelo desastre. Este é mais um caso de grandes empresas que não têm nenhuma consideração pelas pessoas que vivem nos locais onde suas atividades são desenvolvidas, nem pelo meio ambiente, que está sendo prejudicado”, afirma Pedro Martins, advogado sócio do escritório de advocacia internacional PGMBM, que representa os moradores, juntamente com os escritórios Araújo Advogados Associados e Omena Advocacia.
O líder comunitário do bairro do Bom Parto, Fernando Lima afirma que a primeira audiência foi finalizada com uma boa expectativa. “Nós atravessamos o oceano à procura de justiça. Porque não conseguimos encontrar no nosso país. Atravessamos o oceano em busca de justiça que não encontramos no Brasil. A gente sai daqui com a perspectiva boa, com uma perspectiva que a gente não tinha há muito tempo”, conta o líder comunitário.
Em nota à época a Braskem afirma que segue acompanhando os desdobramentos. “A primeira audiência da ação ajuizada na Holanda por alguns moradores de Maceió, em 2020, foi realizada hoje e contou com a participação de representantes da empresa, que acompanha o processo e tem apresentado suas manifestações nos autos”, diz a petroquímica.
Fonte: Painel Alagoas