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23/03/2021 às 16h00

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1 ano de pandemia: o primeiro ano do resto de nossas vidas. No jornalismo também?

 

O primeiro ano do resto das nos­sas vidas. Acho que dá pra dizer que, ao completarmos um ano do primeiro caso de coronavírus no Brasil, temos a sensação do primeiro ano de um nova vida, muito diferente do que qual­quer um de nós poderia ter pensado em viver quando estava lá ven­do os fogos de artifício na virada de ano para 2020 ou mesmo no carnaval do ano passado que, aliás, foi nes­sa mesma época há um ano. Temos experimentado de tudo. Saudade, restrição, solidão, lidado com a morte e as narrativas da perda. Passamos a usar termos novos, a falar de comorbidades, variante, IFA e respirador, como quem falava de qualquer outro tema cotidiano. Vimos a disputa entre notícias falsas, remédios que não cu­ram, receitas que não combatem co­ronavírus e vimos também vacinas serem produzidas em tempo recorde. O ano de 2020 trouxe a pandemia e a vacina. E como contamos tudo isso?

 
Usamos o que já tínhamos, con­tando histórias e distribuindo informações nas redes sociais. Ouvimos podcast. Descobrimos ferramentas que não conhecíamos como as reuni­ões virtuais por Zoom, Meet, Teams. E o jornalismo? O que foi feito dele nesse ano do resto das nossas vidas? A desacreditada narrativa que vinha sendo bombardeada junto com as grandes empresas que no Brasil concentram a produção. O começo da pan­demia trouxe um novo vigor à nar­rativa jornalística. Programas foram criados nas emissoras de TV dando espaço para que o jornalismo pesquisasse e explicasse, simultaneamente, o que era coronavírus, que se escreve-tudo-junto, que causa a Covid, que é no feminino. Informou às pessoas como usar máscara, que tipo, de que jeito, como usar álcool gel, com que frequência, como abraçar, porque não abraçar, a diferença entre isolamento e distanciamento social e por aí foi. Gráficos, números, entrevistas com autoridades, máscaras em todos os repórteres e, enfim, a retomada de certo protagonismo.

As análises, que aproximaram os jornalistas dos especialistas, dos ci­entistas e dos profissionais de saúde, se juntaram às instruções que são repetidas até hoje sobre como proceder na pandemia. Mais que isso, o jornalismo voltou a lembrar que precisava contar histórias. E justamente num tema que, por um lado, não per­mitia acesso fácil a certas narrativas como aquelas que aconteciam nos hospitais, cemitérios e nas casas das pessoas. E por outro, passou a ser um assunto que, aos poucos, podia ser contado por todo mundo.

 
Durante parte de 2020, para sair das falas oficiais das autoridades e mostrar para as pessoas que havia risco real de adoecimento e morte, os jornalistas precisaram chegar às UTIs, como fez o repórter Yan Boechat nas matérias do hospital Santa Maggiore, em São Paulo, ou nos hospitais de Manaus, na primeira onda da Covid, em abril. Ou quando acompanhou diariamente a rotina de cemitérios em São Paulo e constatou o au­mento de sepultamentos, a abertura de covas coletivas e viu famílias contarem o que estavam passando com a perda de parentes para a Covid-19.

 
A reportagem de outros jornalistas também contou com uma nova forma de ter acesso às histórias. Pes­soas que antes seriam fontes de in­formação e também leitores passaram a produzir conteúdo a pedido dos jornalistas porque acessar o interior de hospitais era difícil e arriscado. Ve­mos ainda hoje vídeos gravados por médicos falando da rotina de trabalho e do agravamento do quadro de contaminação no país. Vídeo de familiares a respeito das condições de atendimento e das consequências da pró­pria doença ou da explosão de casos nas portas dos hospitais. Muitos são produzidos diretamente para jornalistas utilizarem como fonte e como apu­ração das suas reportagens. Outros, já na esteira da difusão da produção audiovisual, chegam ao público direto do cidadão para os usuários de redes sociais e são comentados depois pelos jornalistas.


E aí entro num novo momento do jornalismo na pandemia. Depois dessa inovação da mediação, da produção de conteúdo e da apuração sem a presença do jornalista, com seu simultâneo aumento e perda de acesso, dependendo do ponto de vista que se olha, em que lugar está o jornalismo um ano após o início da pandemia no Brasil? Essa inovação, o desafio, a frustração, a busca de novo protagonismo e de interesse das pessoas permanece em alta ou voltamos a um lugar morno como estava antes? Não se trata de uma análise mais detida e detalhada do processo e as respostas talvez sejam híbridas. Há avanços que permanecem acontecendo, especialmente uma retomada e um realinhamento da narrativa jornalística e do discurso científico, que nunca esteve em oposição, mas que neste momento aparece ainda mais como aliado, tentando defender quase a mesma noção. A confiabilidade. De que o ponto de vista mais confiável para lidar com a pandemia de Coronavírus e vencê-la é a orientação da ciência. Enquanto a linha mais confiável para conduzir narrativamente e traduzir a linguagem da ciência em relação à pandemia é a narrativa jornalística. As notícias falsas, boatos e soluções milagrosas ou narrativas fantásticas não colaboram nem para o combate ao vírus nem na construção da democracia e na defesa da cidadania. Então, este alinhamento parece claro. As reportagens sobre as vacinas explicam os pormenores de eficácia, enquanto os cientistas são as principais fontes para comprovar a explicação.

 
Na falta de uma condução das informações, dados e avaliações centralizadas pelo governo federal, veículos tradicionais de comunicação se reuniram num consórcio para levantar e divulgar dados diários da pandemia. A colaboração não alcançou a produção, mas chegou ao menos aos dados objetivos sobre o andamento da contaminação.

 
Ao contar histórias, o jornalismo não tem ido adiante. Dados gerais, ações, reações dos governos e instruções sobre os cuidados para evitar o vírus e, no máximo, o acompanhamento das atividades que reabrem ou fecham. Vimos histórias serem contadas nos colapsos que estão ocorrendo em 2021 como a segunda onda em Manaus, o agravamento da situação em Santa Catarina e vários outros lugares. Mesmo assim, elas sempre começam a ser contadas a partir dos celulares das vítimas, das famílias ou dos médicos. Não é incomum, inclusive, que a gente veja os relatos ou indicações de subida de casos primeiro nos nossos grupos de WhatsApp e não nas reportagens. Então o primeiro ano do resto das nossas vidas impactou muito mais nas nossas vidas do que ainda fomos capazes de narrar. O jornalismo não alcançou ainda a dimensão dessa transformação na vida das pessoas e nem traduziu isso na transformação necessária do seu próprio exercício. Talvez pela rigidez da estrutura narrativa e de produção que tinha até agora. Talvez porque a transformação ainda esteja em curso assim como os acontecimentos da própria pandemia.


Chegamos a um ano sem esperar que chegássemos a tanto e também sem saber até quando vamos com isso. E nem como sairemos de tudo isso, pessoalmente e como sociedade. Mas talvez seja importante pensar que sairemos disso contando histórias. E o jornalismo, repensando sua própria forma de narrar, chegando mais perto das pessoas, mexendo nas suas próprias estruturas enrijecidas pela tradição e pelo tempo, quem sabe possa colaborar para essa narração e a compreensão do que estão ainda vivendo. Como já avisou Hannah Arendt sobre a capacidade das narrativas em lidar com os traumas, talvez narrar não deixe de ser alguma forma de cura.

(Texto publicado originalmente por objETHOS.) *É jornalista e pesquisadora associada do objETHOS
*Publicado na edição 45 da Revista Painel Alagoas


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