O primeiro ano do resto das nossas vidas. Acho que dá pra dizer que, ao completarmos um ano do primeiro caso de coronavírus no Brasil, temos a sensação do primeiro ano de um nova vida, muito diferente do que qualquer um de nós poderia ter pensado em viver quando estava lá vendo os fogos de artifício na virada de ano para 2020 ou mesmo no carnaval do ano passado que, aliás, foi nessa mesma época há um ano. Temos experimentado de tudo. Saudade, restrição, solidão, lidado com a morte e as narrativas da perda. Passamos a usar termos novos, a falar de comorbidades, variante, IFA e respirador, como quem falava de qualquer outro tema cotidiano. Vimos a disputa entre notícias falsas, remédios que não curam, receitas que não combatem coronavírus e vimos também vacinas serem produzidas em tempo recorde. O ano de 2020 trouxe a pandemia e a vacina. E como contamos tudo isso?
Usamos o
que já tínhamos, contando histórias e distribuindo informações nas
redes sociais. Ouvimos podcast. Descobrimos ferramentas que não
conhecíamos como as reuniões virtuais por Zoom, Meet, Teams. E o
jornalismo? O que foi feito dele nesse ano do resto das nossas vidas? A
desacreditada narrativa que vinha sendo bombardeada junto com as grandes
empresas que no Brasil concentram a produção. O começo da pandemia
trouxe um novo vigor à narrativa jornalística. Programas foram criados
nas emissoras de TV dando espaço para que o jornalismo pesquisasse e
explicasse, simultaneamente, o que era coronavírus, que se
escreve-tudo-junto, que causa a Covid, que é no feminino. Informou às
pessoas como usar máscara, que tipo, de que jeito, como usar álcool gel,
com que frequência, como abraçar, porque não abraçar, a diferença entre
isolamento e distanciamento social e por aí foi. Gráficos, números,
entrevistas com autoridades, máscaras em todos os repórteres e, enfim, a
retomada de certo protagonismo.
As análises, que aproximaram os jornalistas dos especialistas, dos cientistas e dos profissionais de saúde, se juntaram às instruções que são repetidas até hoje sobre como proceder na pandemia. Mais que isso, o jornalismo voltou a lembrar que precisava contar histórias. E justamente num tema que, por um lado, não permitia acesso fácil a certas narrativas como aquelas que aconteciam nos hospitais, cemitérios e nas casas das pessoas. E por outro, passou a ser um assunto que, aos poucos, podia ser contado por todo mundo.
Durante parte de 2020, para sair das falas
oficiais das autoridades e mostrar para as pessoas que havia risco real
de adoecimento e morte, os jornalistas precisaram chegar às UTIs, como
fez o repórter Yan Boechat nas matérias do hospital Santa Maggiore, em
São Paulo, ou nos hospitais de Manaus, na primeira onda da Covid, em
abril. Ou quando acompanhou diariamente a rotina de cemitérios em São
Paulo e constatou o aumento de sepultamentos, a abertura de covas
coletivas e viu famílias contarem o que estavam passando com a perda de
parentes para a Covid-19.
A reportagem de outros
jornalistas também contou com uma nova forma de ter acesso às histórias.
Pessoas que antes seriam fontes de informação e também leitores
passaram a produzir conteúdo a pedido dos jornalistas porque acessar o
interior de hospitais era difícil e arriscado. Vemos ainda hoje vídeos
gravados por médicos falando da rotina de trabalho e do agravamento do
quadro de contaminação no país. Vídeo de familiares a respeito das
condições de atendimento e das consequências da própria doença ou da
explosão de casos nas portas dos hospitais. Muitos são produzidos
diretamente para jornalistas utilizarem como fonte e como apuração das
suas reportagens. Outros, já na esteira da difusão da produção
audiovisual, chegam ao público direto do cidadão para os usuários de
redes sociais e são comentados depois pelos jornalistas.
E
aí entro num novo momento do jornalismo na pandemia. Depois dessa
inovação da mediação, da produção de conteúdo e da apuração sem a
presença do jornalista, com seu simultâneo aumento e perda de acesso,
dependendo do ponto de vista que se olha, em que lugar está o jornalismo
um ano após o início da pandemia no Brasil? Essa inovação, o desafio, a
frustração, a busca de novo protagonismo e de interesse das pessoas
permanece em alta ou voltamos a um lugar morno como estava antes? Não se
trata de uma análise mais detida e detalhada do processo e as respostas
talvez sejam híbridas. Há avanços que permanecem acontecendo,
especialmente uma retomada e um realinhamento da narrativa jornalística e
do discurso científico, que nunca esteve em oposição, mas que neste
momento aparece ainda mais como aliado, tentando defender quase a mesma
noção. A confiabilidade. De que o ponto de vista mais confiável para
lidar com a pandemia de Coronavírus e vencê-la é a orientação da
ciência. Enquanto a linha mais confiável para conduzir narrativamente e
traduzir a linguagem da ciência em relação à pandemia é a narrativa
jornalística. As notícias falsas, boatos e soluções milagrosas ou
narrativas fantásticas não colaboram nem para o combate ao vírus nem na
construção da democracia e na defesa da cidadania. Então, este
alinhamento parece claro. As reportagens sobre as vacinas explicam os
pormenores de eficácia, enquanto os cientistas são as principais fontes
para comprovar a explicação.
Na falta de uma condução
das informações, dados e avaliações centralizadas pelo governo federal,
veículos tradicionais de comunicação se reuniram num consórcio para
levantar e divulgar dados diários da pandemia. A colaboração não
alcançou a produção, mas chegou ao menos aos dados objetivos sobre o
andamento da contaminação.
Ao contar histórias, o
jornalismo não tem ido adiante. Dados gerais, ações, reações dos
governos e instruções sobre os cuidados para evitar o vírus e, no
máximo, o acompanhamento das atividades que reabrem ou fecham. Vimos
histórias serem contadas nos colapsos que estão ocorrendo em 2021 como a
segunda onda em Manaus, o agravamento da situação em Santa Catarina e
vários outros lugares. Mesmo assim, elas sempre começam a ser contadas a
partir dos celulares das vítimas, das famílias ou dos médicos. Não é
incomum, inclusive, que a gente veja os relatos ou indicações de subida
de casos primeiro nos nossos grupos de WhatsApp e não nas reportagens.
Então o primeiro ano do resto das nossas vidas impactou muito mais nas
nossas vidas do que ainda fomos capazes de narrar. O jornalismo não
alcançou ainda a dimensão dessa transformação na vida das pessoas e nem
traduziu isso na transformação necessária do seu próprio exercício.
Talvez pela rigidez da estrutura narrativa e de produção que tinha até
agora. Talvez porque a transformação ainda esteja em curso assim como os
acontecimentos da própria pandemia.
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