O desprezo à condição feminina – fruto do machismo – é um dos fatores que levam a existirem crimes como o feminicídio. Essa é a avaliação de Anne Caroline Fidelis de Lima, representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Alagoas.
Para ela, a Lei do Feminicídio é resultado da luta das mulheres ao reconhecimento de que podem ser assassinadas apenas por serem mulheres, “seja em contextos de violência doméstica, como também em outras situações de desprezo à condição feminina. Infelizmente, apesar da promulgação da lei que aumenta a pena pelos assassinatos de mulheres em virtude de sua condição de gênero, ainda são gritantes e frequentes os casos, mas o reconhecimento é fundamental para que possamos ter estatísticas e atacar o problema em sua essência”, afirma. “A essência em questão é o machismo que ataca a autonomia e a liberdade das mulheres, quando, por exemplo, um mulher é assassinada por romper um relacionamento, ou quando é morta numa situação que atente contra sua sexualidade”, completa.
Na avaliação da representante da OAB, é preciso compreender as especificidades da violência que as mulheres sofrem para, a partir daí, criar mecanismos concretos de combate a essa situação, como a criação de leis ou instrumentos como a Patrulha Maria da Penha, da Polícia Militar de Alagoas.
“Não podemos, também, deixar de trabalhar os aspectos culturais que fundamentam o machismo, levando para as escolas, ambientes de trabalho e onde quer que se faça necessário, a discussão sobre o respeito às mulheres e a importância da igualdade de gênero. Nesta perspectiva o Estado e toda sociedade devem se engajar neste propósito que, afinal de contas, é a mera busca por um mundo mais justo. Que esta seja nossa causa”, afirma Anne Caroline Fidelis de Lima.
Alagoas
Para a representante da OAB, Alagoas vivencia avanços importantes no combate à violência contra a mulher, mas ainda aquém do necessário. Ela também ressalta a questão da rede de apoio. “Em Alagoas foram dados vários passos importantes, fruto de lutas da própria sociedade, mas várias demandas ainda estão aquém da necessidade como, por exemplo, o fortalecimento e a ampliação da rede de atendimento às mulheres em situação de violência em Alagoas. Precisamos de mais delegacias, centros de referência e juizados voltados à violência doméstica, da criação de ao menos uma Casa Abrigo de competência estadual e da interiorização da Patrulha Maria da Penha, por exemplo”, aponta. “E que os municípios alagoanos criem seus próprios organismos de políticas para mulheres, como secretarias, coordenadorias ou gerências de políticas para mulheres”, completa.
MPE
A Painel Alagoas procurou o Ministério Público Estadual (MPE), mas sua assessoria de comunicação informou que a promotora de Justiça Maria José Alves, responsável por esses casos estava – até o fechamento desta edição – em licença médica.
CEAM avalia motivos e consequências das agressões
A Painel Alagoas conversou com três especialistas que atuam no CEAM de Maceió: Cláudia Santos, psicóloga; Juliana Izídio, assistente social; e Mariana Amorim de Barros, advogada.
Para a psicóloga Cláudia Santos, os agressores se sentem donos das mulheres, que as perseguem caso elas tentem romper o ciclo abusivo. Ela destaca que não há classe social para ser vítima de violência.
“Ele [agressor] pensa que se ela não se relacionar com ele não vai se relacionar com mais ninguém. As mulheres tentam romper o ciclo, mas o homem não aceita e começa a perseguir. Na maioria dos casos quando elas decidem procurar informações descobrem que eles já têm histórico de agressão a outras mulheres”, diz Cláudia Santos. “Tem mulheres que decidem romper e dar continuidade à sua vida. Porque muitas delas, ao contrário do que se pensa, não estão em situação de vulnerabilidade social. A violência contra a mulher não escolhe raça, condição financeira, classe social”, completa Cláudia.
Segundo a psicóloga, o perfil do agressor se repete em boa parte dos casos.
“Geralmente, os homens são muito apaixonados, mas com o decorrer do tempo se tornam obsessivos, agressivos, violentos e começam a controlar a vida da mulher. Isso vai minando a autoestima delas até o ponto em que ela não se sente mais bonita, não se sente mais merecedora, acha que é culpada pela violência que sofre. Só quando ela percebe que é a vítima ela começa a ter um outro olhar sobre ela mesma”, avalia Cláudia Santos.
Ainda de acordo com a psicóloga do CEAM, reatar o relacionamento abusivo, a chamada reincidência, é mais comum do que se imagina. Na avaliação dela, a mulher confia no agressor ao ponto de acreditar na mudança, mesmo sem acompanhamento profissional.
“Em muitos casos a mulher diz que é efeito de álcool, de drogas, mas isso apenas potencializa. Não é o álcool, é dele mesmo a agressividade. Não é algo rápido, elas não percebem rapidamente, é um processo. Muitas voltam mesmo após as agressões. Tem toda a questão da vergonha, do sentimento de culpa, da preocupação de como as pessoas ao redor vão reagir”, explica Cláudia Santos.
Contudo, a psicóloga pondera que há casos em que o homem, mesmo sendo agressor, também é vítima por ter sofrido abusos em outras fases de sua vida.
“Sabemos que o homem que comete a violência tem que arcar com as consequências, mas em muitos casos nós percebemos que o agressor é vítima também. Ele sofreu algum abuso e viveu em um ambiente de violência. Para ele, as coisas se resolvem com violência porque ele aprendeu desde cedo que deve ser assim. O ambiente familiar era de uma mãe que sofria violência. Lógico que nem todas as pessoas que crescem em um ambiente de violência doméstica serão agressores, mas isso influencia”, explica Cláudia Santos.
Já a assistente social Juliana Izídio destaca que, na maioria dos casos, a vítima crê no arrependimento do agressor. Embora seja uma questão extremamente polêmica, ela diz ser possível o recomeço entre agressor e vítima, desde que haja comprometimento e, principalmente, acompanhamento psicológico.
“Inclusive o Estado tem um programa chamado Repense, que fica a cargo da Seprev [Secretaria de Estado de Prevenção à Violência] e que funciona na Casa de Direitos. Lá o agressor tem a oportunidade de passar por um acompanhamento. Isto entra como medida após o registro da agressão. O homem é encaminhado para apoio com assistente social e psicólogo, pois, querendo ou não, a gente faz de tudo, politicamente, juridicamente, mas muitas pessoas acabam reatando e esse programa serve para se ter a chance de mudar, de trabalhar esse comportamento agressivo. Se ele faltar, descumpre a medida. Todo mundo tem a chance de mudar e se arrepender, basta querer essa mudança”, diz a assistente social.
Para Juliana Izídio, quase todos os casos de violência doméstica podem culminar em feminicídios. “O risco é muito grande porque se ela permite um beliscão, um empurrão, de repente vem um soco no olho. Se ela decidir acabar, a chance de ser morta é maior ainda. A morte geralmente ocorre quando a mulher dá um basta”, afirma a assistente social.
Para a advogada do CEAM Mariana Amorim de Barros, o desamparo aumenta as chances de feminicídio. Em dois anos atuando no Centro, ela destaca não ter acompanhando nenhum caso de morte por causa dos serviços prestados no local.
“Por que essas mulheres recebem acompanhamento psicológico, orientação jurídica, o que realmente reduz o índice de feminicídio. Mas nos demais casos, onde a mulher está desamparada pelo Estado a chance é muito elevada. Essas não conseguem romper o ciclo da violência”, afirma. “Nós sentimos que quando a mulher chega aqui é porque a violência já tomou uma proporção muito grande e, realmente, a mulheres já tentaram de forma paliativa fazer uma conciliação do agressor e não tiveram êxito. Chegam muito nervosas, apreensivas, com muito medo. Nós orientamos sobre o que se deve fazer, mas não podemos tomar decisões pelas vítimas. A gente faz a escuta, mesmo que ela não denuncie”, completa a Mariana Amorim de Barros.
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Fonte: Painel Alagoas